Existe um jogo à venda em Portugal com bilhetes com muitas cores e muito vistosos, com temas infantilizados e à disposição de praticamente todos os consumidores. Esse jogo ficou conhecido por Raspadinha.

 A abundância da oferta, associada a quem o patrocina, o promove e o explora, induz uma sensação de segurança no consumidor. Sensação essa reforçada pelo facto de o consumidor achar intuitivamente que se fosse um produto perigoso não existiriam tantos jogos a serem vendidos em todos os cafés e quiosques, em todas as esquinas e papelarias do País. Se fosse perigoso, pensa o consumidor, a Santa Casa ou o Estado não o permitiriam. Se fosse algo de menos bom, a utilização de desenhos infantis não seria possível, pois isso atrairia as próprias crianças.

Não permitiriam um jogo à disposição de toda uma população em que não é solicitada nenhuma identificação ao consumidor nem qualquer outro registo que lhe proporcione alguma proteção. Um jogo em que nem sequer existe uma possibilidade de auto proibição, tal como acontece noutros jogos.  Vendido em múltiplos pontos de venda, numa autêntica sala de jogo nacional a céu aberto, nas proximidades de locais frequentados por pessoas mais vulneráveis, muitas delas idosos que vivem das suas parcas reformas e que muitas vezes substituem os medicamentos pela Raspadinha. Perto de escolas ou hospitais, em estações de correio e hipermercados ou na loja da esquina. Com um regime especial de publicidade e regulação. E como social que é só pode fazer bem mas na verdade faz também mal. E muito. Os exemplos abundam e praticamente toda a gente tem conhecimento de um ou outro caso. De um vizinho, de um amigo ou mesmo de um familiar.

Embora prossiga fins sociais e de benefício para a coletividade (e apenas por isso se poderá chamar social), a verdade é que assume a verdadeira natureza de jogo de fortuna ou azar, muito viciante tanto pelo resultado imediato como pela circunstância repetida dos quase-prémios, o que leva o apostador a sucessivas tentativas para os alcançar.

O jogador, no momento em que “raspa”, nem sequer tem a informação sobre se os prémios maiores daquela série já terão saído ou não. Por exemplo, nas slot machines dos casinos o jogador tem a informação num ecrã ou display sobre o valor do jackpot, ao qual a máquina em que joga o habilita (e sabe no momento em que aposta se os prémios maiores já sairam ou não), na Raspadinha, o apostador joga no escuro. E com probabilidades menores de alcançar o prémio. Na Raspadinha a taxa de devolução de prémios aos apostadores é significativamente inferior a taxa de devolução que por lei pode ser praticada nos casinos.

Em Portugal, em 2019 cada pessoa consumiu em média 160 euros em raspadinhas enquanto no mesmo ano, em Espanha o consumo médio foi de 14 euros, ou seja, 11 vezes mais de consumo médio. Significa isto que temos seguramente problemas mais agudos de jogo patológico entre os portugueses.

O jogo da Raspadinha tem levado cada vez mais pessoas a pedirem ajuda ao Centro de Apoio a Toxicodepedentes (CAT) e a clínicas privadas. Descrita por alguns psiquiatras como sendo a “droga do século XXI”, a adição afeta principalmente as classes mais vulneráveis, principalmente os idosos e as mulheres que encaram um jogo como uma distração e uma forma de ganhar dinheiro.

Comprar uma raspadinha é fácil e aparentemente barato. Contudo, estabelecida a pulsão e a adição, pode sair muito caro.

Segundo um estudo da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, 76,6% dos jogadores de raspadinha pertencem à classe social baixa ou média-baixa. É sabido que as famílias mais pobres jogam muito mais este tipo de jogos do que as famílias mais ricas.

Sofia Pinto, responsável pela Unidade de Psiquiatria Comunitária do Centro Hospitalar Universitário do Porto, indica que este fenómeno é “preocupante” e revela mesmo que já “há casos sinalizados entre beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI)” que ficam sem dinheiro por causa do jogo, sendo que a Segurança Social já teve de intervir, referenciando-os para tratamento.

É também natural e compreensível que um desempregado procure uma raspadinha milagrosa para a resolução da sua situação de desespero.

Em volume de vendas, este jogo em 2019 gerou 1718 milhões de euros, representando mais de 50% dos lucros dos Jogos Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, entidade que naturalmente os destinou a fins de natureza social.

É urgente uma melhor regulação deste jogo pelo Estado de modo a que possam salvaguardar-se as consequências nefastas que a sua prática exagerada tem trazido e traz, especialmente para os mais pobres e mais fragilizados que veem nessas apostas uma tentativa desesperada de melhorar as suas vidas.

O Estado tem de intervir e rapidamente. O Governo, a quem incumbe regular, não pode ser ao mesmo tempo um promotor do jogo, como acontecerá com a raspadinha do Património, caso esta venha mesmo a avançar.

Não pode contribuir ainda mais para este desastre social ao pretender lançar em maio a denominada Lotaria do Património (Raspadinha do Património), onde pelos vistos se pretende que aqueles que menos beneficiam do Património Cultural, o financiem!

A 15 de maio, o Ministério da Cultura planeia lançar esta nova raspadinha, com um custo de €1, utilizando os lucros obtidos no jogo, cujas receitas estão previstas em 5 milhões de euros anuais, para o Fundo de Salvaguarda do Património Cultural.

Têm sido vários os apelos ao congelamento da medida. Pelos vistos ainda sem sucesso.

Serão assim as classes mais vulneráveis a financiar o Património, uma função que obviamente deveria caber ao Estado, o qual opta por criar um imposto sobre a pobreza, para cumprimento de uma função que deveria ser sua.

Com esta medida o Governo irá agravar um problema social já suficientemente identificado e divulgado por vários especialistas em diversos setores da sociedade portuguesa.

Esperemos que o bom senso prevaleça e que além da suspensão da medida relativa à Raspadinha do Património, se preparem também e com urgência as necessárias alterações legislativas para uma regulação de toda a lotaria instantânea em Portugal.

Impõe-se com urgência, limitar o número de postos de venda, fazer uma seleção rigorosa e cautelosa dos locais de venda, implementar a possibilidade de auto proibição dos jogadores (se por exemplo a raspadinha estivesse associada a um cartão de jogador, o próprio poderia solicitar o auto bloqueio), informar no próprio bilhete e de forma bem visível da perigosidade do jogo à semelhança do que acontece com o consumo de tabaco, assim como o reforço da indicação do contato das linhas de apoio ao jogador.

É imprescindível limitar o apelo a esse jogo, o qual sob a aparência de inocuidade e de segurança para o consumidor se tem revelado muito perigoso e viciante.

O Estado não pode pretender que os mais vulneráveis e os mais pobres paguem políticas públicas erradas. O jogo responsável não pode ser apenas um slogan publicitário.

 José Eduardo Deus

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