O CAFÉ CHINÊS DE ESPINHO

 

Carlos Evaristo Félix da Costa  ( 1828-1906 ) era empresário hoteleiro estabelecido no norte de Portugal, filho de uma rica família de emigrantes no Brasil. Natural do Porto, onde residia, resolveu no entretanto, apostar em duas prometedoras zonas turísticas: Espinho, inicialmente, onde em 1861 fundara o «Café Chinês de Espinho», e depois na Póvoa de Varzim, onde passaria a residir na década de oitenta.

O «Café Chinês da Póvoa», iniciou a sua actividade em 1886, sendo à semelhança do de Espinho, centro de tertúlia intelectual, espaço de diversão musical, e local privilegiado para a prática ( proibida por lei ! ) de jogos de fortuna ou azar.

A decoração de ambos os Cafés, toda em estilo oriental, advém do seu apreço por essa cultura, que bem conhecia das suas diversas viagens ao Celeste Império.

Aliás, juntamente com os filhos, Alberto Evaristo Félix da Costa ( 1858-1911 ) e Carlos Evaristo Félix da Costa Júnior, explorou também o comércio de importação de artigos orientais. Alberto Evaristo, a par deste negócio estabeleceu-se em 1894 como fotógrafo na Póvoa, criando em 1895 a “Photografia Evaristo”, no Largo do Café Chinês (hoje Largo Dr. David Alves), na esquina com a Rua do Norte (hoje Rua da Alegria). O seu irmão, Carlos Evaristo Júnior, criou uma outra “Photografia Evaristo”, em 1901, mas em Espinho.

 

 

EM 1876 RAMALHO ORTIGÃO FALA DOS CAFÉS E DO JOGO PROIBIDO EM “AS PRAIAS DE PORTUGAL”

“Uma espessa athmosphera de fumo dos charutos, empregnada dos vapores do alcool, da cerveja e do café, envolve aquelle grande ruido. As portas mulheres do povo, homens de cajados e jalecas ao hombro olham apinhados e em bicos de pés.

Por cima de um d’estes cafés é a casa de jantar do hotel Luso-Brasileiro, um vasto saläo que em algumas noites se converte em gala de baile. Näo ha club. Os bailes organisam-se por subscripção entre os banhistas e a casa é alugada para esse firn aos proprietarios do hotel.

Em todos os cafés ha um compartimento supplementar em que se joga o monte ou a roleta; em um d’elles passa-se da sala do bufete ao jardim, onde se acha a roleta installada n’um bonito pavilhäo. 

Na Povoa, assim como em Espinho, na Foz, na Figueira, em todas as grandes praias, a concorrencia em volta do panno verde é das mais curiosamente variadas. Homens de todas as condicões sociaes, proprietarios, funccionarios publicos, capitalistas, professores, litteratos, militares com os sens uniformes, sacerdotes com as suas corôas. Como o jogo é prohibido, como a casa da tavolagern se considera secreta, corno ha uma entrada mysteriosa, cada um se julga ao abrigo da notoriedade e todo o munda joga. Os caixeiros imaginam que näo seräo ahi vistos pelos seus patrões, os filhos que näo encontraräo la os seus paes, os devedores remissos que estaräo livres dos fornecedores irnplacaveis, os amanuenses que não daräo com os chefes de secretaria, os jovens tenentes que estaräo a coberto do olhar reprehensivo e severo dos commandantes dos corpos. Depois, la dentro, se os inesperados encontros se effectuam, como geralmente succede, a cumplicidade n’um delicto commum estabelece uma indulgencia reciproca. Isto e uma calamidade que só ha um meio de evitar: decretar a liberdade do jogo sob certas condicöes essenciaes entre as quais não devem esquecer  as seguintes:

1ª Que o jogo seja inteiramente publico, com porta aberta para toda a gente sem excepção alguma. Desde que um filho-familia com os seus sapatos envernizados, as suas meias de seda e as suas luvas côr de perola, resolve frequentar a batota, é preciso que entenda bem que se rebaixa até o ponto de ir achar-se sentado entre um moço da cavallariça e um empregado na limpesa dos canos, os quaes iräo com as suas camisas gordurosas e fetidas e com os seus pés nús dar á mocidade inexperiente e elegante a dura lição das vicissitudes sociaes.

2ª Que a casa de jogo seja assignalada á critica do publico, ao exame dos philosophos e á vigilancia da policia par meio de uma taboleta e de uma lanterna especial que estara accesa toda a noite.

3ª Que a policia tenha direito, quando o julgue conveniente, de exigir o nome de cada um dos jogadores, a fim de que possa capturar os vadios, que por ventura se tenham escapado á accäo da lei.

4ª Que os proprietarios das casas de jogo sejam devidamente inscriptos nos registros dos escriväes de fazenda, que se torne extensiva á sua industria a lei tributaria que pesa sobre os lucros proporcionaes de todos os cidadäos.

5ª Que os banqueiros, proprietarios das casas de iogo sejam obrigados a uma escripturacão regular e authentica dos seus lucros e perdas, da qual a policia extraia os dados precisos para a estatistica geral do vicio, averiguada pelo exame d’estas novas casas toleradas.

A repressão do jogo, além de offensiva da liberdade, e difficil de se tornar effectiva. Dá em resultado encarcerar de quando em quando alguns pobres diabos que jogam os seus patacos em um quarto de taberna, emquanto deixa impunes os jogadores mais poderosos que encontrarn sempre meio de evadir-se ás pesquisas policiaes.

Emquanto o jogo fôr uma illegalidade secreta, elle mantera os attractivos das coisas defesas. É preciso dar-lhe na sociedade o seu verdadeiro logar e mostral-o claramente, não como um fructo prohibido, mas como um fructo pôdre.

Enquanto a imprensa considerar sob outro ponto de vista a questão do jogo este continuará como ate agora fazendo estragos irremediaveis na honra e na fortuna das familias e constituirá nas praias de Portugal durante a estação dos banhos o mais lamentavel flagelo”.

Em Novembro de 1882, n’AS FARPAS ( vol. 1 ),  Ramalho fala-nos da batota, na qual também já participara, e dos assaltos às casas de jogo da Póvoa ( pg. 91 ), nos seguintes termos: “Não pretendemos julgar o ponto de vista das auctoridades constituidas sobre o assumpto batotas, porque estamos convencidos de que essas auctoridades, morigeradas e pudibundas, não foram nunca às casas de jogo, o que as desarma de toda a habilitação precisa para se poder discutir com ellas sobre esta questão”.

Ramalho continua, tal como em 1876, muito crítico relativamente à proibição do jogo nos termos em que ela se processava. Veja-se como a ela ( batota ) se refere após descrição da sua participação numa sessão em São João da Foz ( Farpas, vol. 1, p. 102-103 ):

Tal é em sua natureza e em seus effeitos, a simples coisa chamada a batota.

Temos visto do jogo muitas e mui variadas definições. A unica porém que inteiramente nos satisfaz é a seguinte:

             O jogo é uma asneira.

Reduzida assim a questão aos seus verdadeiros termos, não podemos deixar de perguntar ao governo com que direito elle intervém para o fim de castigar as asneiras em que cada um incorre? Procurar evita-las ainda se lhe poderia permitir, mas puni-las!? Se tivessem de ser presos todos aquelles que fazem asneiras, o proprio governo seria uma coisa impossivel, porque ha muito não haveria ministro nenhum que andasse solto.

E, por cima de tudo, procuram impingir-nos a explicação sophistica de que é para o fim de salvar o povo da ruina, que a policia maternal assalta e sequestra as batotas!”

Mas é ao Café Chinês de Espinho ( Celeste Imperio como era conhecido ) que Ramalho Ortigão ( FARPAS, vol. 1, p. 274 a 278 ), se refere detalhadamente e usando de enorme ironia ( note-se que o Café Chinês da Póvoa só verá a luz do dia em 1886 ):

Ao longo do « Chiado» as batotas são quasi tão numerosas como as filiaes das lojas dos Loyos e dos Clerigos. Um lojista, a quem pedi o obsequio de me trocar uma libra, informou-me delicadamente de que não tinha prata, mas que eu a encontraria na roleta da porta ao lado. 

A falta de tempo, que tantas vezes obsta ao cumprimento dos nossos mais sacrosantos deveres, me impediu de visitar todas as casas de tavolagem que exornam esta tão alegre e afamada praia.

Aquella em que estive, e que denominam o Celeste Imperio, pareceu-me ser um estabelecimento  inteiramente respeitavel e dignissimo.

Recommendo-o vivamente a todos os viajantes, principalmente aos filhos familias, aos mancebos morigerados que desejem tornar-se bemquistos na sociedade, aos caixeiros de commercio que pretendam estabelecer-se por conta propria, aos que tiverem negocios pendentes dos tribunaes ou das repartições do Estado, e finalmente em geral a todos quantos prezarem a solida convivencia de pessoas gradas e doutas, que mais tarde Ihes poderão servir de auxilio, de protecção e de arrimo na espinhosa senda da vida.

Em Lisboa, por exemplo, não se imagina o trabalho enorme, a dificuldade  muitas vezes insuperavel que o pretendente de provincia encontra em chegar á fala com um sr. director geral ! No Celeste Imperio, pelo contrario, as cousas deslisam de per si, suavemente, pondo-nos em contacto immediato com todas aquellas personagens que desejarmos conhecer. Basta uma placa de dois tostões e uma simples palavra para a gente se dirigir a quem quizer: Piso no valete com o sr. conselheiro!

Não é preciso mais nada. Depois de ter a gente pisado por tres vezes no valete com um conselheiro e com dois tostões, póde perder seis tostões; mas, além de ter tido um gôsto na vida, fica ainda com um conselheiro no bolso. É gallinha! O edificio do Celeste Imperio é espaçoso e nobre. Nada da futriquice das repartições publicas, dos estabelecimentos de instrucção, ou das secretarias de Estado! Soberbos espelhos em magnificas molduras imitando o xarão, mas imitando-o sem servilismo nem baixeza, cobrem os muros, de grande pé direito, nos espaços intermediarios das janellas amplas e rasgadas até o tecto. A ventilação é excellente, e a luz penetra largamente nas salas com uma profusão que ainda não vi em nenhuma das escholas nem das galerias do paiz.

As mesas são vastas e solidas, permittindo aos pontos toda a liberdade de movimentos, quer para pôr o seu dinheiro sobre as cartas do monte, nos numeros da roleta ou no bôlo do baccarat, quer para chamar a si os ganhos, ou vice-versa, quer para se desforrar da desillusão dos palpitantes roendo as unhas, arrancando os cabellos, ou rilhando a bengala.

A roleta, propriamente dicta, é uma rica peça, em tudo digna da alta missão que exerce no seio da sociedade. Serve-lhe de cupula e dá balanço impulsivo ao giro da roda uma bem trabalhada estatueta de prata representando um mandarim bailando, de braços abertos e dedos apontados para o tecto. Pensamento lindo!

Este mandarim, servindo de remate e corôa á roleta de Espinho, representa naturalmente a auctoridade, representa o mando, a força, o poder supremo do Estado, e representa conjunctamente a galhofa na sua expressão mais official, mais faceta, mais inoffensiva e mais parva. Nada mais aprazivel do que o aspecto d’esta engenhosa roleta ministrando aos seus numerosos e illustres frequentadores o gôso publico e confortabilissimo de um jôgo prohibido, e bem assim o da imagem augusta da auctoridade e da lei, de chapéo de guizos e dedos para o ar, bailando á roda, emquanto gira o marfim, para recreio da companhia!

Resumindo as impressões que deixou no meu espirito o exemplar instituto do Celeste Imperio em Espinho, eu faço votos fervorosos para que o paiz em todo o seu conjuncto possa um dia hombrear com a jogatina espinhense.

Á camara dos deputados, ao lyceu nacional de Lisboa, á galeria portuense de bellas artes, aos futuros museus escholares, commerciaes e industriaes, ao futuro theatro de opera popular, ás futuras salas de concertos e de conferencias scientificas e litterarias, desejo deveras uma installaçáo tão decorosa, tão elegante, tão bem accommodada aos seus fins como a d’este convidativo e confortavel estabelecimento. Aos debates parlamentares desejo vivamente a mesma compostura, a mesma gravidade, a mesma decencia, a mesma propriedade de expressões e a mesma nobreza de gestos, que caracterisam esta assembléa; e aos clubs politicos, aos centros artisticos e litterarios, ás companhias anonymas de responsabilidade limitada, ás juntas geraes de districto e ás juntas de parochia, aos bancos, ás associações commerciaes, aos cabidos, ás confrarias, ás collegiadas, e em geral a todos os corpos collectivos – de caracter politico, de caracter commercial, de caracter scientifico, de caracter religioso – eu desejo emfim, acima de tudo, o conjuncto e a cooperação de cavalheiros tão distinctos, tão illustres, tão idoneos e tão venerandos, como os que ora vejo presentes, em torno do panno verde, no ambito d’esta espelunca!

 

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