João Paulo Almeida                                     

(Diretor-Geral do Comité Olímpico de Portugal)

Luís Rebordão

(Fundador do Observatório do Jogo Responsável)

 

Os mais frágeis ao serviço do património cultural

Materializando uma medida inscrita no Programa de Governo de reabilitação do património cultural, através da criação de uma “Lotaria do Património”, a proposta de Lei do Orçamento de Estado para o ano de 2021 prevê a aprovação pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de um jogo autónomo de Lotaria Instantânea denominado «Do Património Cultural», derrogando o disposto na legislação actual sobre a forma de distribuição dos resultados líquidos dos jogos sociais explorados por aquela entidade por forma a atribuir integralmente tais resultados ao Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, destinando-se a despesas com intervenções neste âmbito.

Ou seja, é criada uma Raspadinha cujas receitas – previstas em 5 milhões de euros anuais – revertem integralmente para aquele fim, de igual forma a outros momentos da nossa história onde sucessivos governos lançaram mão do exclusivo de exploração do jogo em Portugal, para financiar atividades de maior ou menor interesse público, por mais que a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia considere que a sua prossecução não pode ser um objetivo atendível para caucionar regimes monopolistas ou restritivos à concorrência, como aquele que vigora em Portugal.

A salvaguarda da ordem pública face aos riscos de infiltração criminosa e a proteção de vulneráveis, nomeadamente crianças, idosos e pessoas com parcos rendimentos à exposição ao jogo, foram e são os principais pilares que justificam uma excecionalidade do mercado do jogo na aplicação de princípios de concorrência e liberdades fundamentais do Mercado Interno.

Ora, o momento e o jogo escolhido não poderiam ser os piores para o governo demolir estes princípios, já de si tão periclitantes, comprometendo a responsabilidade do Estado, e da Santa Casa que opera em exclusivo os jogos sociais, em manter os seus clientes a salvo de eventuais danos.

Primeiro, o momento, de crise pandémica com impacto económico profundo sobre segmentos socioeconómicos com menores recursos e gerador de maior risco de adição, o qual tem precipitado a vasta maioria das jurisdições europeias a adotarem medidas restritivas aos mais diversos tipos de jogo, banindo ou restringindo fortemente a publicidade, patrocínios, limites de aposta, ou licenciamento de novos jogos, pontos de venda e operadores, enquanto se intensifica o controlo de liquidez dos apostadores e eficácia dos sistemas de autoexclusão, impondo contribuições obrigatórias dos operadores para programas de educação, prevenção, tratamento e investigação em Jogo Responsável e Integridade no Desporto, amplamente reportado, por exemplo, no recente relatório da Câmara dos Lordes “Gambling Harm – Time for Action”.

Segundo, o tipo de jogo – a Lotaria Instantânea, designada com a marca comercial Raspadinha -, que, de acordo com evidência recolhida pelo Observatório do Jogo Responsável em estudos epidemiológicos e investigações sobre o tema, tem uma elevada prevalência em jovens adultos e idosos, desempregados, reformados e população não ativa, conforme concluem estudos como o Gambling Behaviour in Great Britain (2016) ou o National Gambling Impact Study (1999) apontando para um consumo em lotarias das famílias mais pobres 20 vezes proporcionalmente superior às famílias mais ricas.

Pese embora a ausência de estudos epidemiológicos desta natureza e distribuição amostral em Portugal, o crescimento exponencial em volume de vendas deste jogo que em 2019 gerou 1718 milhões de euros atesta a sua popularidade, representando mais de 50% dos lucros dos Jogos Santa Casa, bem como o potencial de risco de um jogo altamente exposto a populações vulneráveis dada a sua frequência rápida de eventos e recompensas psicológicas, possibilidade de jogar de forma continuada e enganosamente barata, conter os chamados “quase prémios”, não exigir particular perícia ou literacia de jogo e ser vendido numa profusão de pontos de venda, alguns deles situados nas proximidades ou dentro de locais frequentados por populações vulneráveis como escolas, hospitais, estações de correio e agora em algumas cadeias de supermercado.

Tudo isto gozando, em exclusivo, de um regime especial de publicidade e regulação. Em prol das boas causas e do património cultural, positivamente discriminado face a outras causas, explorando franjas da população financeiramente frágeis no meio de uma crise sem precedentes.

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