Jogo responsável
Tendo o crime organizado mantido os seus laços históricos com o jogo físico não é surpreendente que as vulnerabilidades na regulação tenham tornado o mercado online particularmente apetecível para redes de criminalidade transnacional.
A Europa assistiu na última década a uma mudança sem precedentes no mercado de jogo e de apostas desportivas, a qual alterou significativamente os padrões de consumo dos apostadores, as características dos operadores, os mecanismos de regulação e os factores de risco associados a esta actividade.
No virar do século passado o jogo era administrado maioritariamente a nível local e nacional. Cada jurisdição estabelecia e calibrava o sistema que considerava mais adequado para proteger a ordem pública, cujo risco de perturbação é tradicionalmente acrescido nas actividades de jogo, e garantir a sustentabilidade das receitas públicas.
Com efeito, o mercado oscilava invariavelmente entre jurisdições totalmente proibitivas do jogo, sistemas de direitos exclusivos através de um monopólio público ou de licenciamento condicionado a um número restrito de operadores nacionais através de um quadro regulador relativamente estável.
A súbita emergência do mercado online veio, porém, oferecer um conjunto de factores que romperam com um padrão de estabilidade consolidado e aumentaram os factores de risco na integridade do jogo e das apostas, nomeadamente:
A expansão avassaladora de operadores online num curto espaço de tempo (estimam-se em mais de 8000 os operadores que oferecem apostas desportivas a nível mundial), com o influxo de accionistas privados cujos antecedentes, identidade e eventuais ligações ao crime organizado são difíceis de determinar devido à opacidade das suas estruturas e operações estabelecidas maioritariamente em paraísos de jogo e paraísos fiscais (mais de 80% de operadores).
A transição de um regime dominante de apostas mútuas e loto para um mercado onde as apostas à cota fixa são esmagadoramente dominantes, florescendo as ofertas de apostas ao vivo, bolsas de apostas, apostas cruzadas e apostas derivadas (opção de apostar em circunstâncias que não apenas o resultado final da competição).
A integração do mercado com o surgimento de conglomerados que agregam a oferta de jogos de fortuna e azar, apostas desportivas, póquer e jogos de casino em ambiente físico e online, frequentemente com negócios nos sectores do turismo, entretenimento, restauração e imobiliário.
O aumento das percentagens de retorno, devolvido em prémios aos apostadores, que numa década passaram de valores entre os 60 e 70% para taxas superiores a 95%, a que se tem associado a progressiva legalização da liquidez internacional e a possibilidade de oferta legal de jogos de elevado risco sem limite de montante de aposta.
Neste contexto a globalização e a expansão do jogo são, conforme se comprova pelos indicadores do volume de negócios do sector, uma tendência incontornável num novo paradigma que, em diversas circunstâncias os Estados Membros contribuíram para legitimar, por força dos condicionalismos da crise económica que encontraram na liberalização do mercado uma fonte alternativa de receita fiscal, particularmente incentivada pelas instituições que supervisionaram os países europeus sob programas de assistência económica e financeira.
Com efeito, as reformas legislativas e a criação de autoridades reguladoras, instituíram um sistema necessariamente imaturo e à procura da sua estabilidade, suportado por um novo quadro normativo, consideravelmente fragmentado e por regulamentar, onde os reguladores têm num curto espaço de tempo de levar a cabo um significativo número de tarefas essenciais para o licenciamento dos operadores, muitas vezes sem os recursos ou as competências necessárias para o efeito, nem tão-pouco o conhecimento das novas dinâmicas de um mercado em permanente mudança e exposto a elevados factores de risco.
Tendo o crime organizado mantido os seus laços históricos com o jogo físico – controlado em diversas jurisdições por máfias e tríades – não é surpreendente que as vulnerabilidades na regulação tenham tornado o mercado online particularmente apetecível para redes de criminalidade transnacional estenderem as suas actividades de branqueamento de capitais, fraude e cibercrime, sendo particularmente preocupante a dispersão do amplo mercado de jogo chinês com a implementação do rigoroso plano de combate à corrupção do regime de Xi Jinping, nomeadamente para outras paragens com afinidades culturais e comunidades socialmente enraizadas.
Impõe-se, por isso, perante os limites das soberanias nacionais em complexas questões de jurisdição; as falhas de supervisão internacional; as célebres ineficiências de cooperação judicial em matéria criminal, ou as carências de treino, de técnicas de investigação e mecanismos de partilha de informação de órgãos de polícia criminal, reguladores, operadores e autoridades desportivas para as técnicas específicas de criminalidade associadas ao jogo e às apostas desportivas, assumir uma conduta de responsabilidade social e autodisciplina que não se confine apenas à conformidade com a lei, a qual, é sabido, apresenta diversas lacunas na sua implementação.
Uma conduta onde a viabilidade económica do modelo de negócio, alimentada por campanhas agressivas de marketing, pondere valores e se oriente por princípios. Afinal a responsabilidade social e corporativa trata-se do respeito pela sociedade em que uma organização está baseada e do seu contributo responsável para a consolidação de um sector de elevado risco social como é o do jogo.
Nesta medida afigura-se determinante para a integridade das apostas desportivas e a sustentabilidade do mercado de jogo, físico e online, que as partes interessadas se distingam e credibilizem por uma atitude de parceria colaborativa, a nível nacional e internacional, alinhada por boas práticas e padrões de excelência internacionalmente reconhecidos.
Práticas essenciais para forjar uma relação de confiança com jogadores e apostadores, adeptos e organizações desportivas, onde se incluem, entre outros, procedimentos efectivamente cumpridos de auto-exclusão, de informação ao consumidor, restrição de menores e jogo responsável; deveres de diligência e “know your customer”; deveres de reporte e cooperação; e procedimentos de controlo de branqueamento de capitais, num quadro de transparência em relação à estrutura accionista dos operadores e critérios de idoneidade dos seus gestores.
Apenas através de uma resposta global coordenada entre parceiros comprometidos com estes princípios é possível trilhar um percurso que afaste a criminalidade da rota dos apostadores, agentes e organizações desportivas, com as profundas consequências económicas e danos reputacionais que isso acarreta.
Equipa do Jogo Responsável
Com o apoio e colaboração:
Alfredo Lorenzo, Director de Segurança e Integridade – La Liga
Emanuel Macedo de Medeiros, CEO ICSS Europe and Latin America – Coordenador da Aliança Mundial para a Integridade no Desporto
Fred Lord, Director de Operações de Transparência, Anti-Corrupção e Integridade Desportiva (ICSS) – Ex-Gestor do programa de integridade no desporto da INTERPOL
João Paulo Almeida, Director-Geral – Comité Olímpico de Portugal
Laurent Vidal, Professor de Direito Público – Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne
Luis Rebordão, Fundador do Observatório do Jogo Responsável