LUÍS REBORDÃO

 

Em entrevista exclusiva para “O Jogo em Portugal”, Luís Rebordão fala-nos do que já foi feito em matéria de jogo responsável e do muito que ainda há para fazer, visando em primeira linha a proteção do jogador e das suas famílias mas também do próprio setor do jogo. Segundo este especialista, Portugal beneficiaria também da criação de um Provedor do Jogador, uma instância acessível, rápida e imparcial para resolver conflitos e representar o consumidor.

 

 

Como avalia a evolução do comportamento dos jogadores portugueses nos últimos 10 anos, especialmente com o crescimento do jogo online?

Nos últimos dez anos, o jogo em Portugal passou por uma transformação profunda. O que antes era uma experiência ocasional, delimitada a um espaço físico e a um momento específico, tornou-se uma presença constante no quotidiano digital. O jogo online trouxe acessibilidade total, hoje joga-se a qualquer hora e em qualquer lugar. Essa conveniência mudou o comportamento dos jogadores: aumentou a frequência, reduziu o tempo de reflexão e criou uma relação mais emocional e menos racional com o risco.

O jogador contemporâneo está mais informado, mas também mais vulnerável. Vive num ambiente onde as apostas são rápidas, os bónus são instantâneos e as notificações chegam no momento certo para o manter envolvido. Tudo parece controlável, mas nada o é realmente. A tecnologia criou uma ilusão de domínio sobre o acaso, e é essa perceção de controlo que leva muitos jogadores a acreditar que podem prever, corrigir ou compensar o resultado. Entre os mais jovens, essa tendência é ainda mais marcada: o jogo mistura-se com o entretenimento digital, com a ideia de desafio e com a busca constante por estímulo.

O jogo deixou de ser exceção e passou a ser hábito, e quanto mais acessível é, mais urgente se torna falar de consciência e literacia. Jogar por diversão é legítimo; jogar por impulso é perigoso. O desafio da próxima década será garantir que a liberdade de jogar é acompanhada pela capacidade de compreender o que está realmente em jogo.

Quais foram os principais desafios enfrentados na criação e consolidação do projeto Jogo Responsável em Portugal?

O maior desafio foi, desde o início, falar de risco sem cair no moralismo. Quando o projeto Jogo Responsável começou, em meados dos anos 2000, quase ninguém falava de jogo com uma abordagem equilibrada. O discurso público oscilava entre a banalização e a condenação, sem espaço para a informação. A proposta do projeto foi precisamente preencher esse vazio: criar um espaço de educação e prevenção, onde o jogador pudesse compreender o funcionamento do jogo e os seus riscos sem ser julgado.

Traduzir conceitos técnicos como “vantagem da casa”, “retorno ao jogador” ou “aleatoriedade” para uma linguagem simples foi um desafio permanente. Mas o verdadeiro obstáculo foi manter independência e coerência num setor onde a informação é frequentemente moldada por interesses comerciais. O Jogo Responsável sempre se posicionou fora desse enquadramento, com a missão de informar, e não de promover.

Ao longo dos anos, o projeto construiu uma identidade própria: séries educativas, podcasts, artigos de fundo e campanhas que desmistificam o jogo com base em factos. A coerência tornou-se o seu principal ativo. O resultado é visível: termos como “literacia do jogo” ou “jogo responsável” passaram a fazer parte do discurso público. O projeto mostrou que é possível falar de jogo com rigor, clareza e respeito pelo jogador.

A regulamentação do jogo em Portugal tem acompanhado as novas tendências tecnológicas e comportamentais? Que melhorias legislativas ainda são necessárias?

A regulação portuguesa tem evoluído, mas continua a ser mais reativa do que preventiva. As leis acompanham o jogo, mas raramente o antecipam. No ambiente digital, onde o risco se manifesta em segundos e o comportamento do jogador é moldado por algoritmos, a regulação precisa de ser mais ágil, técnica e centrada no utilizador.

É urgente reforçar a independência do regulador. Enquanto a entidade que supervisiona o setor continuar integrada num organismo que também depende das receitas do jogo, haverá sempre uma sombra de conflito de interesses. O modelo ideal seria uma autoridade verdadeiramente autónoma técnica, financeira e institucional, com capacidade para agir sem condicionamentos e prestar contas de forma transparente.

Também é necessário criar mecanismos modernos de proteção: autoexclusão única e interoperável, limites pré-definidos de depósito e tempo de jogo, e auditorias independentes aos algoritmos que personalizam ofertas e notificações. Esses sistemas influenciam o comportamento dos jogadores e devem ser regulados com a mesma seriedade que se exige em setores como o financeiro ou o tecnológico.

Por fim, falta um provedor do jogador, uma instância neutra que garanta que o consumidor tem voz, resposta e defesa. A regulação do futuro deve proteger antes de punir. E isso significa agir sobre o comportamento, não apenas sobre a infração.

O que mudou na perceção pública sobre o jogo e o vício do jogo desde que o seu site foi criado? Nota maior sensibilização dos vários agentes?

A perceção pública mudou, mas ainda de forma desigual. Hoje, há mais consciência de que o jogo pode gerar dependência e mais aceitação da necessidade de limites. Contudo, a literacia continua baixa: muitas pessoas reconhecem o risco, mas não o compreendem verdadeiramente. Persistem mitos, como a crença de que “a sorte vai equilibrar-se” ou que “jogar com jeito” é o mesmo que jogar com segurança.

O site Jogo Responsável contribuiu para mudar esse panorama. Ao traduzir conceitos técnicos em linguagem comum, ajudou a desmistificar o jogo e a abrir o tema à sociedade. A comunicação tornou-se mais humana e menos dogmática, e isso fez a diferença.

Ainda assim, entre os agentes com mais visibilidade, operadores, clubes, influenciadores e meios de comunicação, a sensibilização continua limitada. Muitas campanhas falam de responsabilidade no rodapé enquanto promovem o jogo como sucesso e emoção. A mensagem precisa de ser coerente: não se pode exaltar o risco e falar de prudência no mesmo anúncio.

Em resumo, a sociedade está mais desperta, mas ainda não plenamente informada. O verdadeiro progresso virá quando a ideia de “jogar com responsabilidade” deixar de ser um slogan e passar a ser uma cultura partilhada.

Quais são as estratégias ou ferramentas mais eficazes atualmente para promover o jogo responsável, sobretudo entre os jovens adultos?

Com os jovens adultos, a prevenção tem de ser inteligente e empática. Estes jogadores não respondem a avisos genéricos; respondem a mensagens diretas, visuais e autênticas. Por isso, as estratégias mais eficazes combinam design comportamental e educação digital.

Plataformas que incluem limites de tempo e despesa automáticos, lembretes de pausa e mecanismos de autoexclusão fáceis de usar criam um ambiente de jogo mais seguro. São pequenas barreiras que protegem o jogador de si próprio, sem retirar a diversão. Além disso, mensagens adaptadas em tempo real, que alertam para padrões de risco à medida que surgem, são muito mais eficazes do que campanhas tradicionais.

Mas nenhuma ferramenta substitui a educação. É preciso falar a linguagem dos jovens, mostrar-lhes como o jogo realmente funciona, sem dramatismos nem paternalismos. Quando compreendem que a probabilidade de ganhar o Euromilhões é semelhante à de adivinhar o número de telemóvel de um chefe de Estado, percebem o essencial: o jogo é entretenimento, não investimento.

Também é essencial que os influenciadores e figuras públicas assumam responsabilidade no modo como falam de jogo. A normalização da aposta como parte da diversão quotidiana é um risco real. O discurso deve mudar: mais transparência, menos glamour.

Promover o jogo responsável é, no fundo, dar poder ao jogador, o poder da consciência. Quando o conhecimento vem primeiro, a liberdade é mais segura.

Como avalia o papel do regulador neste domínio?

O regulador tem uma função vital, mas precisa de evoluir. O SRIJ cumpre a sua missão dentro das limitações que o modelo integrado impõe, mas Portugal precisa de uma autoridade independente, ágil e pedagógica. Um regulador que dependa das receitas do jogo que fiscaliza não pode ser plenamente livre, e a confiança pública depende dessa independência.

Um regulador moderno não se limita a licenciar ou sancionar. Deve monitorizar, informar e prevenir. O risco no jogo online não se mede apenas em euros, mas em padrões de comportamento. É fundamental que a regulação entre na dimensão tecnológica: que audite os algoritmos que personalizam bónus, que imponha regras claras de transparência e que proteja o jogador mesmo antes de ele perceber que precisa de proteção.

É, no entanto, motivo de grande satisfação pessoal ver que, onze anos depois, o princípio do jogo responsável foi finalmente inscrito na legislação portuguesa como um dos pilares centrais da política de jogo. Foi uma conquista lenta, mas decisiva, que valida a importância do trabalho iniciado muito antes de o tema ganhar visibilidade pública. Ver esse conceito, que durante anos defendi como eixo ético e pedagógico, refletido na lei representa o reconhecimento de que a proteção do jogador não é um acessório, mas uma obrigação estrutural.

Portugal beneficiaria também de criar um Provedor do Jogador, uma instância acessível, rápida e imparcial para resolver conflitos e representar o consumidor. E seria desejável que o regulador comunicasse de forma mais aberta, com relatórios regulares e dados públicos sobre práticas de proteção, autoexclusões e limitações.

A boa regulação não é a que castiga mais, mas a que evita que o dano aconteça. O papel do regulador deve ser o de garantir que o jogo é seguro, previsível e justo, não porque confia no setor, mas porque o fiscaliza com transparência e rigor.

Conclusão

O jogo é uma atividade legítima, mas só é saudável quando o conhecimento vem primeiro. Aleatoriedade, probabilidade, vantagem da casa, retorno ao jogador e comportamento são temas que não pertencem apenas aos reguladores ou aos casinos, pertencem a todos. Compreendê-los é a melhor forma de proteger o jogador e o próprio setor.

O Jogo Responsável nasceu com essa missão: transformar informação em literacia, e literacia em proteção. Porque no fim, a melhor aposta é sempre a mesma — a aposta no conhecimento.

14.11.2025

 

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