Nota: Este texto é de ficção. Qualquer semelhança com a realidade presente ou passada de Macau, de Portugal, do Japão ou de Singapura é mera coincidência.

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Uma concessão de jogo, como qualquer pessoa, tem um ciclo de vida. Na origem está a decisão de uma certa jurisdição no sentido de legalizar a exploração do jogo, tomada geralmente muito a custo ou no meio de um coro de dúvidas,receios e protestos. Uma decisão assaz difícil, quase sempre forçada por uma dura realidade económica: recessão,crise profunda e dificuldades de financiamento dos cofres públicos.
Em tempos de vacas magras acontecem coisas de todo «anormais», que nunca sucederiam se não fosse a grave situação de aperto. Surgem enormes aumentos de impostos, são lançados novos impostos e criadas novas fontes de receita. Como por exemplo o jogo,que, assim, a contragosto, vai passar a existir.
Não que a procura estivesse ausente.
O jogo a dinheiro existe sempre: senão é legal, faz-se de modo ilegal.
Pelo que os mais racionais dirão que sempre é melhor tê-lo às claras, com regulamentação e naturalmente com tributação.Assim, com dúvidas morais, e sob o peso do estado de necessidade financeiro, lá se avança para a legalização do jogo. É preciso superar a recessão, dinamizara economia, criar emprego e sobretudo obter receita fiscal. A ideia da concessão de jogo começa então a despontar.
São feitos estudos,são discutidos modelos e opções. Onde será localizada, quem a poderá explorar e em que termos. Se se poderá fumar nos espaços de jogo e como é que se previne o branqueamento de capitais. E quanto é que vai ser o imposto. Aponta-se para a atribuição de uma concessão em regime de exclusivo, por meio de concurso público. A concessionária terá também de executar importantes investimentos, que muito contribuirão para a dinamização do turismo e da economia.
Tudo se começa a agitar.
As empresas de jogo internacionais acordam para o «mercado emergente» que se anuncia e fazem declarações públicas de apoio. Começa em força o lobbying. Surgem artigos em jornais e revistas e intervenções em conferências sobre como a nova jurisdição que aí vem deve enquadrar o jogo. Aventam-se ideias sobre quanto se deve tributar ou como deve ser estruturada a entidade de supervisão.
Posicionam-se no terreno as empresas que ambicionam obter a concessão: abrem escritórios de representação,organizam espectáculos, patrocinam eventos culturais e fazem tudo para dar nas vistas e demonstrar aos autóctones o muito que podem fazer.Com elas, o futuro será brilhante.
O auge é atingido em conferências em que as muitas empresas interessadas apresentam ambiciosos projectos de arquitectura, que irão criar um efeito de atracção turística imparável,extraordinário, nunca antes visto.O processo avança.
Após longos debates e muita negociação, o parlamento aprova as leis necessárias. De seguida,o Governo prepara os regulamentos e o caderno de encargos. Tudo caminha a bom ritmo. É então lançado o concurso público. É o momento de máxima especulação e efervescência. Surge uma longa lista de concorrentes. Todos dão palpites sobre quem terá melhores hipóteses, mais capitais, melhores projectos e mais experiência. Até que chega o dia histórico. Em conferência de imprensa, o responsável máximo anuncia o resultado: a vencedora é a concorrente ABC, Ltd.
Nesse dia, as suas acções disparam em bolsa para máximos históricos.Nos canais económicos discute-se longamente o potencial financeiro deste novo mercado.
Por outro lado, para todas as outras concorrentes o momento é de derrota, de esperanças destroçadas. Foi tudo em vão. As suas acções afundam nas bolsas,causando um mini-crash. Algumas não aceitam a decisão. Avançam para tribunal, mas os litígios não dão em nada: os juízes dão razão ao Governo, visto que tudo se passou dentro da legalidade. Em pouco tempo, a poeira
assenta.
Temos concessionária. A nova concessionária dá conferências de imprensa, em que agradece bastante ter sido escolhida. Diz que se sente muito honrada e que tudo fará para cumprir integralmente os compromissos assumidos no contrato de concessão que vai assinar.
Tudo esclarecido, é a hora de começar a trabalhar. Há projectos de arquitectura e de obras, acessos, transportes,terras, estruturas básicas, um milhão de coisas para resolver, já que a nova operação será como que uma pequena cidade. E sobretudo há o problema dos financiamentos do enorme investimento que se anuncia.
Passam meses. As obras da concessionária ainda não arrancaram.Os comentadores começam a perguntar se haverá algum problema.
Surgem artigos nos jornais. Nas redes sociais e nas caixas de comentários muitos afirmam que a empresa não era de confiança, que já sabiam que isto ia acontecer e que o Governo deveria agir de imediato e retirar-lhe a concessão.
A concessionária tem uma agenda secreta? Quererá transmitir a concessão a terceiros e embolsar um lucro fabuloso sem nada construir? O verdadeiro objectivo seria posicionar-se para uma outra jurisdição que não a nossa? Todos perguntam o que é que afinal se passa. A concessionária esforça-se por explicar que os atrasos se devem a motivos técnicos, a modificações nos projectos de modo a melhorá-los. Há, é verdade,também alguns pormenores ligados aos financiamentos, que se resolverão muito em breve.
Assim, é já no meio de algum nervosismo e de bastante desconfiança que finalmente é lançada a primeira pedra do edifício. Temos obra, afinal. Passam anos. Até que, um belo dia, com pompa e circunstância, muito fogo de artifício, brindes e na presença de todas as excelências da terra, o complexo é aberto ao público. O jogo vai começar. Acorrem multidões. No casino, os croupiers do Bacará estão muito sorridentes. Na recepção do hotel hálas intermináveis para o check-in. O centro comercial, um verdadeiro labirinto, é invadido por hordas de turistas ansiosos por novas lojas de artigos de luxo. A excitação é muita. A concessionária começa a facturar receitas muito significativas. O encaixe fiscal aumenta bastante e com isso podem finalmente avançar algumas obras públicas há muito ambicionadas.
A concessionária torna-se rapidamente no maior empregador da terra.
Adquire poder e influência. Tem casinos, hotéis,restaurantes, barcos, aeronaves,dezenas de autocarros, projectos imobiliários, centros comerciais,espectáculos, um centro de convenções.Os altos responsáveis da concessionária passam a marcar presença em todos os principais actos públicos. Financiam outras actividades, dão apoios ao desporto e às universidades.
Com o passar dos anos, a concessionária adquire um estatuto sempre cada vez mais importante. É verdade que a concessão tem um prazo muito longo,de vinte anos ou mais. É uma geração;duas décadas é muito tempo. É para outros resolverem, quando essa altura chegar.
Porém, o tempo vai inexoravelmente decorrendo. O que ao princípio era muito longínquo vai-se paulatinamente aproximando. Os académicos, os mercados e os banqueiros começam a questionar o futuro. Como vai ser agora? Já falta pouco tempo para o fim da concessão. A pressão aumenta rapidamente. Todos querem respostas.Até que o Governo, como se previa,decide anunciar que, nos termos legais,vai ter lugar um novo concurso público.Uma vez mais, um impiedoso momento de decisão vai ter de acontecer.
Perante isto, regressam em força os analistas e os comentadores. Fazem-se balanços. Avalia-se a performance da concessionária. Será que vai ter condições para continuar? Será que vai ser derrotada por concorrência mais forte?
Começam a surgir na imprensa artigos claramente ligados à concessionária,alertando para a necessidade de ter muito cuidado. Não há que embarcarem aventuras. É preciso não acreditarem promessas vãs de especuladores de fora. Nós, que estamos cá há muitos anos, somos os únicos de confiança.
O Governo não pode ser ingénuo.
Torna-se muito nítido aquilo que já todos sabiam: a concessionária mudou muito, nestes anos. Antes era como que uma jovem muito elegante e bonita.Agora está mais forte, mais pesada. Fala com maior convicção, com uma voz mais grossa.
Adquiriu poder.
Porém, no seu íntimo, sente-se fragilizada. Este era, desde o início, um casamento com prazo. Está vulnerável a todo o tipo de influências e exigências que lhe sejam feitas. Quer, a todo o custo, assegurar a continuidade. Quer estar nas boas graças de quem decide.Tendencialmente aceita todas as imposições que lhe sejam feitas. Tem uma aguda consciência de que pode ser «despachada» sem grande cerimónia, trocada por outras com promessas mais sedutoras.
Desespera e pensa:
«Não quero morrer! Quero ressuscitar e continuar no novo ciclo que se vai abrir!».
E, assim, chega a hora do novo concurso público. A concessão não vai ser prorrogada, vai mesmo extinguir-se. Voltamos à estaca zero. Com o problema de que o concurso público não é um exame do passado, mas sim uma discussão em redor de projectos futuros.
A concessionária insiste em que não sejam cometidas irresponsabilidades.Porém, a comissão do concurso só vai olhar para os projectos que forem apresentados, como exige o interesse público.E é este o ponto em que se toma a nova decisão e voltamos ao início.
 JORGE GODINHO
Professor visitante na Faculdade de Direito
da Universidade de Macau

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