Foto Cláudio Neto

Aquando dos vinte cinco anos da morte do Zeca Afonso, numa excelente homenagem da RTP, Rui Pato, músico que muito colaborou com o homenageado, depois de tecer os maiores elogios à sua voz, ao seu inquestionável talento musical, à sua criatividade, à maneira como tentou casar gerações e culturas diferentes, afirmando que nos arranjos, ele sabia sempre muito bem o que queria dos músicos, fosse através de gestos, estalando os dedos, fosse trauteando. Sim. Porque acrescentou ele, o Zeca a tocar viola, era um podão !

Fiquei deliciado com esta expressão tão beirã, tão dos meus sítios ou seja, tão camponesa, que até mestre Aquilino Ribeiro se sentiria realizado, ao ver que a sua azáfama, o seu empenho, a sua estrafega de trazer o campo para cidade, não tinham sido um ar que lhe deu, e estavam finalmente dando seus frutos.

Um podão, é como muitos saberão, uma roçadoira com cabo de madeira, logo mal atramenhada, pouco perfeita, acrescentaríamos, nada nariz de santo, que o uso vai deteriorando, logo o chamar-se vulgarmente podão, a alguém que não foi particularmente apadrinhado pelo deus do jeito. É assim a riqueza de vocabulário da nossa língua, que o ditado, – “cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso”- espelha na perfeição.

Poderíamos apresentar uma chusma de exemplos mas vamos ficar-nos pelo termo “banana”, muito usado na gíria dos casinos.

Aquilo que para a maior parte das pessoas não passa da fruta mais consumida no mundo, para os empregados de casino, ter uma banana, é usufruir de alguns minutos de descanso, concedidos pelos chefes, sejam para alguma necessidade fisiológica, para fumar, tomar um comprimido, ou pura e simplesmente para aliviar o stress.

Há quem se desunhe para ter uma bananinha, quem dê isso de barato, e quem até use a malandrice, o sentido de humor, para levar a carta a Garcia.

As melhores bananas, as mais saborosas, numa palavra, as “madeirenses”, são indiscutivelmente as dadas antes da saída, porque, a dez ou quinze minutos antes das três da matina, devemos juntar pelo menos outros quinze, mais arrátel menos arroba, que é o tempo normalmente usado com o fecho das bancas.

Isso, parecendo pouco, a muitos profissionais de banca dá-lhes sobejamente para chegarem a casa ou até, quantas vezes, para refrescar a garganta.

Naquela noite, eram aproximadamente duas horas e vinte, e havia já mais de sessenta minutos que uma das três bancas francesas abertas ao público, não dava qualquer golpe, nem se vislumbrando que viesse a fazê-lo, dada a ausência de clientes suficientes na sala de jogo. Consciente disso, o chefe responsável pelos horários, aproximou-se discretamente e deu ordens para que fechassem, acrescentando:

Depois basta ficar um, os outros podem sair.

Uma onda de satisfação, um sorriso de orelha a orelha invadiu os três profissionais, porque instintivamente, cada qual pensou, que seria um dos outros a permanecer na banca até ao fecho.

Banca arrumada, contada, conferida, (uma recomendação sempre presente) e eis que Hélder, o fiscal da banca, tomando a palavra com a sua habitual bonomia e sarcasmo, pausadamente como convinha, para não espantar a caça, quase a medo, medindo cada expressão, qual trapezista andando sobre cabo de aço, alvitrou:

– Bem, como basta ficar um, eu como a pessoa mais velha, logo a mais fustigada, mais carente de descanso e, deixemo-nos de modéstias, igualmente a mais graduada, como os colegas não ignoram, deduzo que o primeiro a sair, e os colegas não verão nisso qualquer espécie de atropelo ou imposição… seja eu.

– Eu estava aqui a pensar, – avançou com o vagar próprio de quem é bom para ir buscar a morte, Temudo, pagador na banca, numa ironia fina, relaxante, pretensamente ingénua mas mordaz quanto baste, – que, sendo o meu caríssimo amigo uma pessoa extraordinariamente culta, bem formada e de elevado sentido do dever, não desconhece que, as mordomias, os altos cargos e as altas funções, quiçá mesmo o chamado posto que a velhice adiciona, são ótimos para o ego, para a vaidade interior mas, há sempre um maldito “mas”, com os seus inconvenientes: o comandante do navio, é sempre o último a abandonar a nau; logo, o meu estimado amigo, no seu altíssimo cargo de fiscal de banca, com imensa pena nossa, – apontou para o fiscal e para o colega dos dados – tem de continuar no seu posto.

– Então, como o colega, permita-me que o trate como tal, não tem intenção de se sacrificar pelo seu chefe, e está no seu pleníssimo direito, talvez o colega dos dados o queria fazer…

– Não, – volveu o Temudo, – porque sendo o mais novo e o que vive mais longe, também não se afigura  o mais adequado…

– Penso que ele não precisará de advogado de defesa (diz o fiscal), embora caia sempre bem a solidariedade da classe, mas sendo assim, como estamos num país democrático, somos pessoas de bem e, muito, muito importante, trabalhamos todos numa sala de jogo… proponho que façamos um sorteio.

Se ninguém se opõe, tenho aqui três papéis, escrevo os nossos nomes em cada um deles… e o nome que sair, ficará na banca  até ao encerramento da sala de jogo.

– Com a sorte que eu ando… já sei a quem vai tocar, – murmurou o Temudo.

Enquanto escrevia os nomes e enrolava os papelinhos:

– Como diz o povo, não se pode ter sorte a tudo não é, -“azar ao jogo, sorte ao amor”- Pronto, já está, – virando-se para o pagador dos dados, – mete no copo, lança como se fossem dados, e… pode ser mesmo o Temudo a tirar que é para não dizer que lhe damos azar.

Operação executada… papel desembrulhado e…  as letras mágicas: TEMUDO.

-Tinha de ser, eu sabia…  eu sabia… mas porque não adivinho assim a sorte grande?!

Hélder (o fiscal da banca) e o outro colega (deitador de dados) que não emitiu qualquer opinião, saíram sorridentes, não sem que o fiscal tivesse recolhido os papéis do sorteio.

Às três da manhã, depois de dado o último golpe, Temudo regressou aos balneários para se desfardar e, ao baixar-se para tirar os sapatos, bem junto ao seu armário havia três papéis, com jeito de que já tinham estado anteriormente amarrotados, e imagine-se… em todos estava escrito a palavra… TEMUDO !

Por: Mário Ramos Cardoso

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